Opinión
O que já nem arde

Nos últimos tempos, na Europa culta e democrática acatamos o mandato de Trump e investimos em armamentos. Apelando a uma suposta insegurança internacional, optamos por comprar sofisticados joguetes para o terror. Nem detemos um genocídio, nem questionamos a obscena acumulação de riqueza; simplesmente aceitamos que se deteriorem as nossas conquistas sociais em benefício da indústria bélica e continuamos vegetando num simulacro de felicidade. Esquecemos as mais elementares noções de economia doméstica até que surge um problema.
Como era de esperar, a seca deste verão tórrido desatou um inferno. Incêndios de última geração calcinam imensas massas florestais que atuavam como pulmões do território e refúgios de biodiversidade. E as contas não saem. Porque, em vez de gastarmos em apagar lumes, precisaríamos brigadas que trabalhassem na sua prevenção durante todo o ano, bem equipadas e com salários justos. As equipas de bombeiros iam proteger-nos bem mais que as armas, especialmente se acabamos com os contratos para funções de extinção que não demandam formação prévia e chegam através duma ETT.
O dinheiro que anualmente gastaremos em munições poderia orientar-se, aliás, a uma autêntica política do monte, que incitasse as atividades económicas na sua contorna e recuperasse o pastoreio: burros e ovelhas têm dentes como armas e podem controlar a dentadas essa vegetação silvestre que agora alimenta as chamas. Mas parece, outra vez, que preferimos as armas das multinacionais. Posto que os incêndios levam décadas repetindo-se, não se trata só de que nos governem ineptos urbanitas, que também: alguém tira rédito dos incêndios.
Focar-nos na proteção de enclaves irrecuperáveis é uma solução com a rara peculiaridade de harmonizar o compromisso político do ecologismo com as práticas históricas do rural
A ausência de iniciativas públicas sólidas para recuperar aquela cultura rural que cuidava do monte só se explica por uma conjunção de interesses particulares que analisamos reiteradamente sem obter conclusões definitivas. De facto, as campanhas anti-incêndios alertam-nos contra os asados à grelha, como se o lume se devesse sempre a pequenas imprudências; nada a ver com a firmeza das autoridades ao nos advertirem da culpa nos acidentes automobilísticos ou ao imporem decretos que impedem fumar em espaços públicos.
No mito, a ecologista é incômoda; uma hippy come-flores que nem sabe do mundo real nem entende a cultura tradicional. Como nos ensinou o filme As bestas, o seu perfil é o de uma estrangeira idealista, com a cabeça nas nuvens. Porém, cumpre tomar nota de que as mensagens ecológicas coincidem com as da ciência e de que não temos um planeta B para onde fugir. Adotarmos a perspetiva certa, focando na proteção de enclaves irrecuperáveis, é uma solução com a rara peculiaridade de harmonizar o compromisso político do ecologismo com as práticas históricas do rural.
Apagar o lume de vez vai exigir-nos olhar para dentro de nós e para fora, reconhecer que a nossa ligação com a paisagem é fundamental e adaptar as nossas pulsões ao ritmo lento da natureza
Sabemos também que nas nossas aldeias, nas nossas famílias, existe quem procura benefícios imediatos cultivando eucaliptos, mesmo quando recebera como legado castinheiros ou carvalhos. O capitalismo faz tão bem o seu trabalho que, por um lado, a maioria da população vive em grandes cidades que nunca ardem —e, portanto, ali não será este um problema tão importante como o do da vivenda, por exemplo— e, por outro, as minorias do entorno rural, desconsideradas na grande política, assumiram demasiadas vezes o mantra capitalista da produtividade: dinheiro rápido e com pouco esforço.
Apagar o lume de vez vai exigir-nos olhar para dentro de nós e para fora, reconhecer que a nossa ligação com a paisagem é fundamental —tanto em termos económicos quanto afetivos— e adaptar as nossas pulsões ao ritmo lento da natureza. Mas, sobretudo, obriga-nos a parar os pés a uns poderes que não colocam como prioridade cuidar do que nos toca cuidar: esse monte queimado tão emblemático do que nos tem sucedido.
Agora o que urge é demostrarmos a nossa condição humana, isto é, que, após a catástrofe, não somos ainda esse material inerte que já nem arder pode
Podemos fazer barulho no sofá a queixar-nos de partidos e instituições; outro assunto é organizar a revolta, a exigir um pacto de estado contra o lume. Nas tertúlias, os incêndios igualam-se à dana, mas, como sabemos na Galiza, o lume chegou antes que a mudança climática —para além de que, por muito que se disparem as temperaturas, por si próprias não causam um incêndio se não houver combustão. O que sim se observa em ambos os desastres é o entrelaçamento de interesses capitalistas. Agora o que urge é demostrarmos a nossa condição humana, isto é, que, após a catástrofe, não somos ainda esse material inerte que já nem arder pode.
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