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Ecologismo
A escura pegada digital
Compêndio de banda desenhada sobre o impacto da tecnologia no nosso quotidiano e nas alterações climáticas, a versão em castelhano foi publicada em vésperas do outono. O premiado autor Philippe Squarzoni tem uma longa carreira no género e abordou uma multiplicidade de questões sociais e políticas em cenários europeus, americanos e do Médio Oriente.
A história começa num contexto doméstico, com um pai e uma filha no confinamento durante a pandemia, mas rapidamente se abstrai para um panorama tecno-social, ou poderíamos dizer que salta para a nuvem. Recorrendo em grande parte a montagens de três vinhetas horizontais por página e a outras composições que acrescentam vinhetas de grandes dimensões com texto de apoio, a obra resvala para uma avalanche de dados sobre a comunicação digital e a forma como esta molda as nossas vidas. Números e percentagens que são incessantemente lançados sobre os olhos do leitor ou leitora, muitas vezes sem qualquer relação com as imagens sobre as quais estes cartuchos escritos estão dispostos. Assim descrito, convida-nos a pensar que é tremendamente difícil tecer em conjunto não um, mas pelo menos alguns fios narrativos, e de facto essa é uma das grandes falhas deste livro. Em suma, trata-se de um retrato pessimista dos efeitos de um consumo desproporcionado de recursos, que dispara incessantemente estatísticas até o leitor ficar esgotado. Assim, textos relativamente curtos a nível episódico são expandidos em inúmeras caixas de texto e, como isso torna a leitura cansativa, o autor é obrigado a fornecer contrapontos, pausas para descanso sob a forma de capítulos mais curtos. Nestes, a voz do narrador desaparece e ele joga com instantâneos, compondo mosaicos de flashes que retratam as notícias falsas ou a insurreição trumpista.
Trata-se de um retrato pessimista dos efeitos de um consumo desproporcionado de recursos.
Um dos aspectos mais marcantes é a ausência de alternativas. Podemos ter pouca margem de manobra nesta catástrofe de que somos vítimas e participantes, mas tanto quanto nenhuma, também não é o caso. Por exemplo, quando o autor se concentra nos atores relevantes do esquema dominante (Google, Amazon, Facebook, Microsoft ou Apple) em nenhum momento é dito que se pode renunciar usar o Google, que se pode optar por nunca comprar na Amazon ou por não ter uma conta no Facebook, ou por usar o Linux em vez do Windows. Se o pouco que está ao nosso alcance não for exercido, um estudo como este corre o risco de se tornar um exercício de autoflagelação. Nesse sentido, levanta problemas mas nem sequer sugere tentativas de solução. E quando pergunta: “Será que as tecnologias digitais podem realmente substituir outras tecnologias com mais impacto?” a resposta é simples: não. Mas esta conclusão pode ser alcançada através de outros títulos desenvolvidos com maior solvência, como O Mundo Sem Fim, onde fala um especialista como J. M. Jancovici, um defensor da energia nuclear com quem nem sequer precisamos de concordar para podermos ler nas entrelinhas.
A edição de La oscura huella digital, que na versão espanhola da Errata Naturae acho bastante boa, falha na escolha tipográfica, com péssimos s's e o's. O estilo quase fotográfico do autor também não é do meu agrado (outro caso, O Fotógrafo, de Didier Lefèvre) e, se juntarmos a isso o facto de eu ler sobretudo ficção e de, em geral, não me sentir muito atraído por ensaios desenvolvidos na linguagem da banda desenhada, há circunstâncias suficientes para tornar a incursão pouco promissora. Se falarmos de obras mais ou menos classificáveis no género ensaístico de que gostei (de assinaturas e perspectivas tão díspares como Chester Brown, Hiromu Arakawa, Barbara Stok ou Juanjo Sáez) ou cujo labor reconheço (Christophe Blain ou Sergio García), não se tratava de publicações para o público em geral, produzidas profissionalmente mas sem grande brilho e destinadas a divulgar uma disciplina científica, uma biografia ou um tema de atualidade. Pelo contrário, eram trabalhos com um fortíssimo cunho autoral, em que os criadores ou falavam na primeira pessoa de algo que lhes era muito íntimo ou tinham mergulhado profundamente na questão central. Em contrapartida, Squarzoni acho-o mais um mero espetador —como qualquer um de nós poderíamos ser— com a sua própria opinião, por muito que esta ser apoiada pela quantidade de informação recolhida. Que, aliás, para mim, nunca consegue livrar-se da sensação de ser uma simples acumulação de recortes de jornais, sem apresentar a sua própria voz ou ideias originais.
Este estudo levanta problemas sem sugerir tentativas de solução, mas pode ser útil como material para o ensino secundário.
Deixando de lado essa avaliação pessoal, este parece ser um produto perfeitamente comercializável, capaz de chegar a leitores que não são necessariamente frequentadores de banda desenhada e, sobretudo, àqueles que se interessam pelas questões que aborda, especialmente se nunca as tiverem considerado antes, embora isto último seja um pouco estranho nos dias de hoje. Nunca é demais voltar a sublinhar o custo ambiental de um só terminal de telemóvel inteligente como os que trazemos connosco. Também é interessante deixar de imaginar a Rede como uma entelequia abstrata, quando ela é mais uma soma de acumulações maciças de computadores das grandes empresas tecnológicas e, nas palavras de Squarzoni, uma monstruosa rede submarina à escala planetária. Propondo utilizações, considero este tratado útil como material para o ensino secundário, porque pode convidar à reflexão e abrir debates básicos como: quanto custam os nossos hábitos? É possível mudá-los?
Em suma, o defeito que vi nesta banda desenhada é que não me parece estar a meio caminho —como diz a informação editorial— entre uma novela gráfica, um ensaio autobiográfico (pai e filha são uma desculpa, apenas figurantes) e uma investigação jornalística. Ou talvez seja, e esteja precisamente a meio caminho entre todos eles. A meu ver, falta-lhe uma estrutura e fio narrativo sólidos, não comunica nada em termos de experiência pessoal (como fez Guy Delisle, por exemplo) e não faz uma contribuição relevante em termos da reportagem (algo em que Joe Sacco é um mestre consumado). Por isso, em nenhum destes aspetos acho que calha.
Com as suas múltiplas frentes, a magnitude do problema —quase se poderia dizer civilizacional— abordado por este título está provavelmente devidamente reflectida naquilo que nos conta. No entanto, opino que a forma como o faz, ou seja, a estrutura do volume, o uso da linguagem da BD e os recursos narrativos a que recorre, não é particularmente brilhante. A voz em off e o aparato visual monocórdico e o caos de conteúdos, por mais avassalador que seja o volume de dados que apresenta, podem até ser considerados uma metáfora adequada ao nosso tempo, mas isso não faz dele automaticamente um livro notável.